domingo, 16 de agosto de 2009
A ratoeira está armada
3 de outubro de 2001
A ratoeira está armada
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O palco da guerra
A frota do porta-aviões USS Theodore Roosevelt
Devido ao terreno e à disposição de luta de seus habitantes, o Afeganistão, cujo território é pouco maior que o Estado de Minas Gerais, é um desafio a qualquer força militar. O inverno rigoroso começa dentro de um mês e dura até abril. A neve bloqueia as principais passagens, especialmente no norte, tornando difícil, quando não impossível, o movimento de tropas. "A temperatura cai para 40 graus negativos, e o vento frio, a neve e as tempestades reduzem a capacidade de luta de qualquer unidade militar, mesmo a mais bem equipada", diz o general Himmat Singh Gill, do Exército da Índia. Como adido militar em Cabul, ele viu de perto a humilhação do Exército Vermelho pelos guerrilheiros afegãos, nos anos 80. Até os pilotos soviéticos, acostumados a operar no inverno no próprio país, achavam impossível voar em meio às nevascas afegãs. Um sargento das forças especiais inglesas que ajudou a treinar guerrilheiros afegãos nos anos 80 diz que nas montanhas a neve pode facilmente atingir a altura do peito de um homem.
Na semana passada, os Estados Unidos já tinham armada a ratoeira para decepar a cabeça das células do terror que se aninham nesse território hostil. A principal meta é capturar os militantes do Al Qaeda, do saudita Osama bin Laden, o principal suspeito dos atentados terroristas de 11 de setembro em Washington e Nova York. O cenário da batalha foi traçado na forma de círculos concêntricos. No anel exterior fica a poderosa força naval dos americanos. Na sexta-feira já estavam posicionadas três frotas capitaneadas por porta-aviões nucleares que podem ficar no mar por meses a fio sem reabastecimento. A caminho da região, outro grupo de batalha flutuante formado por treze navios de apoio se juntaria à esquadra. Ao todo, são três centenas dos mais modernos aviões de combate do mundo e 35.000 homens. O objetivo primordial da frota é garantir o domínio do espaço aéreo numa região que vai de Israel à fronteira do Afeganistão com a China. Nessa imensa área, atualmente nem um pardal voa sem ser detectado por algum radar americano. No círculo intermediário, estão o Paquistão e as antigas repúblicas soviéticas que fazem fronteira com o Afeganistão. Nesses pontos todos, já atuam unidades de combate das chamadas forças especiais. São contingentes dos famosos Boinas Verdes, das SAS inglesas e da misteriosa Força Delta, cujo quartel e efetivo poder de fogo nunca foram satisfatoriamente descritos pelos americanos. Anualmente eles fazem um relato secreto a alguns poucos congressistas que, sob juramento, são informados das atividades da Força Delta. Alguns comandos americanos e ingleses já estavam vasculhando montanhas do Afeganistão na última sexta-feira. Um oficial do alto comando americano disse à rede de televisão CNN que as primeiras escaramuças já foram registradas. Cavernas e refúgios dos guerrilheiros nas montanhas tinham sido escarafunchados. Os comandos não detectaram sinal da presença de Laden nem de outros membros de seu grupo.
Fotos AP
A FORÇA DA OPOSIÇÃO
Milicianos da Aliança do Norte numa posição a 60 quilômetros de Cabul: união de etnias minoritárias, o grupo que se opõe ao Talibã não seria aceito como governo no Afeganistão
As incursões do fim da semana passada dão uma idéia de como a guerra será lutada no Afeganistão. Grupos de comandos altamente treinados para sobreviver como os habitantes locais – ou seja, sem necessidade de apoio logístico de suas bases – vão se instalar permanentemente dentro do Afeganistão. Outros grupos móveis, formados por equipes de militares, farão incursões em redutos previamente escolhidos pelas unidades de inteligência. Em alguns casos eles serão lançados de pára-quedas e recolhidos horas ou dias mais tarde por helicópteros enviados de bases nas planícies vizinhas do Tadjiquistão e Uzbequistão, ex-repúblicas soviéticas na fronteira com o Afeganistão. A rigor, essa guerra começou dois dias depois dos atentados a Nova York e Washington, quando as primeiras unidades de comandos e um número não determinado de tropas comuns de divisões aerotransportadas desembarcaram na cidade paquistanesa de Quetta. É uma região-chave, próxima a Kandahar, o quartel-general do Talibã.
BUSH PEDE TOLERÂNCIA
Na presença de líderes sikhs americanos, o presidente Bush defende a tolerância para com as minorias. Depois dos atentados, a polícia registrou vários casos de agressão a membros das comunidades árabe e asiática
A manutenção de bases físicas nos países vizinhos ao Afeganistão é um passo crucial do cerco ao terror. O país que abriga Laden não tem acesso ao mar, o que limita a abordagem militar clássica de conquista pela costa. Essa limitação obriga os americanos a manter as melhores relações com os países vizinhos ao inimigo – ao mesmo tempo em que têm o cuidado de não provocar a ira da população predominantemente muçulmana daquela área. Também por essa razão, a ofensiva diplomática tornou-se o front mais importante da nova guerra. E a guerra está sendo ganha antes mesmo do disparo dos tiros. O esforço diplomático das primeiras semanas já promoveu o isolamento total do Talibã, o grupo islâmico fundamentalista que dá as cartas no Afeganistão e proporciona a proteção de que Osama bin Laden precisa para treinar seus terroristas.
Na semana passada, a Arábia Saudita, a nação mais forte que ainda mantinha laços diplomáticos com o Afeganistão, cortou sua ligação com os talibãs. Os Emirados Árabes já haviam dado o mesmo passo. O Paquistão só não o fez ainda porque a aliança anti-Talibã precisa de seus diplomatas e clérigos para passar aos líderes afegãos os ultimatos e manter uma possibilidade de negociação de última hora. A diplomacia é a parte do esforço de guerra que melhor anda até agora. Os primeiros a dar apoio à guerra americana contra o terrorismo foram os europeus, incluindo a França, que cultiva uma caprichosa rivalidade com Washington, mas entendeu rapidamente a gravidade do momento. A mudança de lado da Arábia Saudita sinalizou para todo o mundo islâmico que a guerra é para valer. Sinalizou também que, com os sauditas ao lado deles, os americanos não podem estar numa cruzada contra o Islã. Querem pegar malfeitores entocados num país islâmico. Isso é outra coisa.
FUGA EM MASSA
A construção de um novo campo de refugiados no Paquistão: geografia do país é um pesadelo para qualquer exército
O azeitamento da diplomacia e o garroteamento dos grupos terroristas no terreno financeiro são tão ou mais importantes nesta guerra que os canhões. Para vencer o terror, Washington precisa da colaboração dos serviços de inteligência de outros países e da ajuda estrangeira para atingir os terroristas onde mais dói, o bolso. Faz parte da estratégia estrangular os recursos financeiros que o terror manipula, sobretudo em paraísos fiscais. Na área diplomática, há uma interessante guinada nos EUA. Como ocorreu na II Guerra, quando o primeiro-ministro inglês Winston Churchill fez aliança com o adversário Josef Stalin, da União Soviética, para abater os nazistas de Adolf Hitler, os americanos estão aceitando como aliado qualquer país que queira ajudar na cruzada contra o fascismo islâmico. Mesmo países com os quais os Estados Unidos tinham atritos são bem-vindos a bordo da aliança.
Na sexta-feira, uma delegação de clérigos paquistaneses, acompanhada pelo chefe do serviço secreto do Paquistão, foi a Kandahar, quartel-general da milícia Talibã, tentar persuadir os mulás a entregar Osama bin Laden. Pode ter sido a última chance de o Afeganistão evitar a represália americana, mas os mulás resistiram. Apenas admitiram ter pedido ao terrorista que deixe o país – "em momento oportuno e por sua própria vontade". Mostraram-se irredutíveis em relação a qualquer tipo de diálogo, declararam-se prontos para o conflito e proclamaram já ter alistado 300.000 voluntários. A delegação de última hora demonstra como o Paquistão está desesperado para evitar uma guerra de resultados imprevisíveis que pode incendiar toda a Ásia Central.
Reuters
Refugiados recebem comida distribuída pela ONU no Paquistão
Pelo menos para o público externo, o governo americano dá sinais de que a operação transcorre sem maiores rivalidades entre seus membros. Claramente, alguns altos funcionários eram favoráveis a uma ação militar mais contundente, mesmo que isso custasse mais antipatia ainda para as posições dos Estados Unidos nos países islâmicos. Nos primeiros dias que se seguiram ao atentado, o governo americano esteve dividido em dois campos rivais claramente distintos. A facção moderada, representada pelo Departamento de Estado, queria caçar os terroristas com armadilhas diplomáticas, financeiras e certa pressão militar localizada. A outra, mais agressiva, liderada pelo Departamento de Defesa, preferia ir à forra contra os Estados acusados de patrocinar o terror. Na semana passada, o presidente Bush deixou claro que, por enquanto, fechou com a tese moderada defendida pelo secretário de Estado Colin Powell. O resultado pode ser decepcionante para quem espera uma guerra que rivalize em espetáculo com o ataque às torres do World Trade Center. Powell optou pelo longo e paciente caminho de reunir apoio internacional ao mesmo tempo que estabeleceu objetivos bélicos bem mais modestos. Se depender de Powell, as ações militares no exterior devem sempre se subordinar aos interesses da diplomacia. Não existem objetivos puramente militares nesse contexto. A idéia é angariar simpatias duradouras e não produzir ódios instantâneos. Como escreveu um colunista da revista The New Yorker, Powell "ficaria feliz em despachar Laden, desarticular sua rede de terror com a ajuda de membros árabes da coalizão – e declarar vitória".
Para tornar ainda melhor a situação para os americanos, as precárias redes de fidelidade tribal que o governo do Talibã havia conseguido montar no país estavam se esfacelando na semana passada. Boa parte do clero e dos milicianos sumiu de vista – não se sabe se os desaparecidos foram guarnecer posições nas fronteiras ou desertaram. As regras de conduta medievais do fanatismo eram mantidas pela coerção policial exercida por 40.000 militares e 300.000 milicianos fundamentalistas. Sem a presença deles nas pequenas vilas, a ordem pública e a obediência à lei estão se evaporando rapidamente. Soldados do Talibã estão invadindo casas na capital, Cabul, e levando à força homens para defender a cidade. Os jovens da etnia minoritária tadjique são os mais visados e carregados para resguardar a parte norte, sob risco de uma ofensiva dos soldados que lutam contra o Talibã sob a bandeira de um grupo chamado de Aliança do Norte. A crueldade está no fato de que esses guerrilheiros, que controlam 10% do país, sejam também, na maioria, da etnia tadjique. Assim, os talibãs levam à força os jovens tadjiques de Cabul para trocar balas com os tadjiques que os combatem no norte.
Muitos moradores já haviam deixado a capital com medo de bombardeios. O temor de uma guerra total fez aumentar nos últimos dias o êxodo de civis para países vizinhos. Antes mesmo que a crise atual atingisse sua fase crítica, Paquistão e Irã já tinham recebido 3,5 milhões de refugiados. Estima-se agora que mais 1,5 milhão de afegãos estejam tentando deixar o país, além de um êxodo interno de 500 000 pessoas. A maioria se dirige ao Paquistão, mas pelo menos 400.000 estão buscando abrigo no Irã, 50.000 no Turcomenistão e outros 50 000 no Tadjiquistão. A fronteira com o Paquistão está fechada e muitos tentam fugir por trilhas nas montanhas. No posto fronteiriço mais próximo que liga Chaman (Paquistão) à cidade afegã de Kandahar, 10 000 pessoas completaram na sexta-feira passada uma semana ao relento aguardando autorização para deixar o país. Não é difícil entender o pânico, em vista da ameaça da máquina bélica americana.
Punir exemplarmente o Talibã não esgota a missão que os Estados Unidos se propuseram. Se o relevo e a vocação de isolamento do Afeganistão são mesmo o laboratório ideal para forjar extremistas e terroristas antiocidentais, é desejável que o país tenha um governo estável. Depois que os fanáticos tenham sido varridos, será preciso enfrentar esse desafio. A opção óbvia é entregar o poder à Aliança do Norte, que reúne uns 12 000 combatentes e se tornou, depois dos atentados, o lado palatável da guerra civil afegã. É uma solução que não daria certo. A aliança controla apenas uma nesga de território e foi duramente atingida pelo assassinato de seu comandante militar, Ahmed Shah Massoud. O crime, cometido por dois terroristas suicidas que se faziam passar por jornalistas, foi atribuído a Laden. Depois, a Aliança do Norte é dominada por membros de grupos étnicos minoritários no Afeganistão. É impensável para as outras etnias que possam ser aceitos como governantes do país. O Paquistão, importante aliado dos Estados Unidos, também não aceitaria a Aliança do Norte, que é apoiada por seu arquiinimigo, a Índia. Depois de expulsar os soviéticos em 1989, os vários grupos guerrilheiros lançaram-se a uma sangrenta guerra civil, movida por rivalidades étnicas, tribais e pelos direitos de controle do contrabando e do tráfico de ópio.
Em linhas gerais, o conflito contrapôs os patanes – a etnia majoritária do centro e sul do país – às minorias étnicas do norte: tadjiques, uzbeques, hazarás e turcomanos. Os talibãs, que surgiram em 1994 e dois anos depois tomaram Cabul, são patanes. Há 10 milhões de patanes no Afeganistão. Compreendem cerca de sessenta tribos de variados tamanhos e importância, cada uma dona de seu território. Cada tribo é dividida em clãs, subclãs e famílias patriarcais. Os tadjiques, que formam a maioria na Aliança do Norte, são quase 4,5 milhões. Uma esperança de reengenharia política do Afeganistão está no retorno do rei Zahir Shah, um velhinho patane de 86 anos exilado em Roma desde que foi deposto do trono afegão, em 1973. Consultado, Zahir gostou da idéia de voltar a Cabul. Os Estados Unidos podem ajudar a Aliança do Norte com equipamento e apoio aéreo – mas parece boa política não enviar soldados para lutar por eles. A história mostra que os clãs e as tribos podem pôr de lado as diferenças quando se trata de combater um inimigo externo. A operação terá sido um sucesso se, no futuro, as tribos afegãs tiverem sido pacificadas não pela guerra mas pelo objetivo comum de se apresentarem ao mundo como um país.
http://veja.abril.com.br/031001/p_040.html
FOTOS:
01-A FORÇA DA OPOSIÇÃO
Milicianos da Aliança do Norte numa posição a 60 quilômetros de Cabul: união de etnias minoritárias, o grupo que se opõe ao Talibã não seria aceito como governo no Afeganistão
02-BUSH PEDE TOLERÂNCIA
Na presença de líderes sikhs americanos, o presidente Bush defende a tolerância para com as minorias. Depois dos atentados, a polícia registrou vários casos de agressão a membros das comunidades árabe e asiática
03-FUGA EM MASSA
A construção de um novo campo de refugiados no Paquistão: geografia do país é um pesadelo para qualquer exército
04-Refugiados recebem comida distribuída pela ONU no Paquistão
05-
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