domingo, 16 de agosto de 2009

O vírus anti-EUA






O MUNDO A SEUS PÉS
Os manifestantes pisoteiam a bandeira americana em protesto no Paquistão na semana passada

Em tempos de paz, o antiamericanismo no Ocidente é uma postura inofensiva, adotada por gente que veste jeans, toma Coca-Cola, come hambúrguer e manda os filhos para os parques da Disney World. Nas conversas dessas pessoas, os americanos são descritos como senhores do mundo mas superficiais, imersos numa cultura consumista e tosca quando comparada aos supostos refinamentos do estilo europeu. Nos dias que se seguiram ao assassinato de milhares de trabalhadores, predominantemente americanos, mas também de dezenas de outras nacionalidades, no ataque terrorista às torres gêmeas em Nova York, o uso político dessa ideologia perdeu a inocência de que habitualmente se reveste. Mal se contaram os mortos nos atentados e já viajava pelo mundo a idéia de que os Estados Unidos foram, em última análise, os causadores da tragédia que se abateu sobre eles.


AP
A GUERRA NO CAMINHO
Manifestante solitário ergue um cartaz pacifista em Los Angeles: oposição começa em casa


Por mais graves que tenham sido os erros e até os crimes cometidos pelos americanos em sua expansão imperial no decorrer do século que se encerrou, as críticas de que foram alvo em demonstrações pelas capitais do mundo na semana passada eram elas próprias um atentado ao bom senso. Em Berlim, 15 000 jovens saíram às ruas para protestar contra os americanos, que já movimentavam suas forças bélicas para atacar os ninhos do terror no Afeganistão. Em Nápoles também houve protestos. Em Atenas, a mesma coisa. No México e na Espanha, esquerdistas picharam muros com o nome e o rosto do terrorista Osama bin Laden, celebrando-o como herói. No Brasil, os protestos foram mal disfarçados em atos pela paz convocados por partidos de esquerda e ONGs no Rio de Janeiro e em São Paulo. Manifestações antiamericanas como essas, num momento de genuína consternação planetária contra o ato terrorista, são intrigantes.

Entre os povos árabes e outras etnias que seguem o islamismo, as causas da aversão aos americanos são mais compreensíveis. A democracia e a modernidade a que se expõem os islâmicos no contato com os Estados Unidos são venenos para as elites locais. Em dois terços dos países islâmicos, os religiosos têm poder de Estado. Os mulás controlam a vida social, política, militar e econômica dos países. Definem comportamentos, estabelecem quem são os inimigos e amigos do país. Nos mais radicais, como o Afeganistão, de onde a televisão e a internet foram banidas, até o tamanho da barba é definido pelo Estado teocrático. "Para os líderes religiosos desses países, a simples existência de uma nação como os Estados Unidos já é assustadora. Mas o pavor mesmo vem do fato de os Estados Unidos não serem uma nação qualquer, mas uma potência hegemônica com interesses econômicos e presença física e militar em regiões islâmicas", diz o professor de filosofia americano Mark Hadley. Num ambiente assim, satanizar os EUA é uma opção política quase natural. Jovens pauperizados e sem esperança de progresso material ouvem dos tiranos que os governam que a causa de sua miséria é externa. Dessa maneira, os governantes árabes colocam nos Estados Unidos a culpa pela própria falta de iniciativa para promover o bem-estar do povo.

Mas como explicar o sentimento de aversão ao modo de vida americano em capitais do Ocidente, onde se realizaram as passeatas da última semana? "O oportunismo das manifestações foi evidente. Mas será que as raízes do ódio aos Estados Unidos penetraram mais fundo do que se imaginava até então?", perguntava a revista inglesa The Economist. Realmente, o luto durou pouco demais. Ele se manteve apenas até o momento em que a formidável máquina de guerra americana começou a exercitar suas garras em frente das câmaras de televisão. Bastou que circulassem as primeiras imagens dos caças F-16 e dos porta-aviões americanos pelas redes de televisão para que o fervor antiterrorista fosse remodelado para uma mobilização contra a guerra de vingança dos americanos. "O número de pessoas que ainda estão chocadas com o atentado é avassaladoramente maior que o daquelas que o viram apenas como mais uma oportunidade de apedrejar os Estados Unidos", escreveu Anatol Lieven, um estudioso americano da Rand Corporation, instituição semi-oficial que há décadas assessora sucessivos governos americanos na área estratégica e foi instrumental durante os anos da Guerra Fria. Mas não se deve invalidar o argumento de Lieven apenas por sua clara filiação ideológica.


AFP
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PROTESTO
Jovens em Berlim seguram cartazes com dizeres: "Parem a guerra. Civilização é genocídio". Na Índia, a queima da bandeira

A reação antiamericana foi quase instantânea e disseminada por muitas capitais do mundo. Nos países islâmicos, parecia um teatro orquestrado e perfeitamente natural. Fora dessa esfera onde Alá é a bússola dos povos, tinha a aparência de uma erupção deslocada, uma interrupção aos gritos de um processo de luto. A livre discussão das idéias é sempre um oxigênio na vida das nações porque libera pressões modernizantes que de outra forma ficariam represadas. Mas, no caso das manifestações da semana passada, o que se viu em muitos lugares foi a união velhaca de raposas da esquerda e da direita, fazendo seu proselitismo. Sob a mesma pregação contra os valores americanos, estiveram na última semana forças ideologicamente tão distantes quanto as representadas por Jean-Marie Le Pen, um racista declarado, líder da extrema direita francesa, e, por exemplo, parte da intelectualidade engajada do Brasil. Le Pen esqueceu sua plataforma política de ódio aos imigrantes de origem árabe para se entregar à tentação de colocar a culpa dos atentados nas próprias vítimas. "Os atentados são condenáveis, mas a política externa americana danosa está na origem da tragédia", disse Le Pen.

Com ligeiras variações foi o que se ouviu de alguns porta-estandartes da esquerda brasileira e também de representantes indistintos da tolice nacional. Ato terrorista é culpa de terrorista em qualquer país que seja cometido. Em artigo no jornal Folha de S.Paulo, na segunda-feira passada, o historiador Boris Fausto, um dos mais respeitados em seu campo de atividade, escreveu o seguinte: "Depois de apresentar as condolências de praxe, essa gente (círculos nacionalistas e de esquerda) acaba dizendo, até com certo prazer, que os Estados Unidos colhem o que plantaram". Reconhecendo os "erros e barbaridades" da sociedade americana, Boris Fausto ressalta o papel vital dos EUA na preservação da democracia e termina por convocar seu leitor a uma escolha: "Ou será que deveríamos lavar as mãos diante da face sinistra dos mensageiros da morte?".

Primitivo como ideologia de mobilização de massas, o antiamericanismo é um fenômeno que merece reflexão. Ele tem razões psicológicas, econômicas, religiosas, étnicas, geográficas e, certamente, ideológicas. Quase todos os países do mundo com algum peso político expressivo atraem simpatizantes e detratores. A má vontade com os Estados Unidos tem o tamanho de seu poder de maior potência militar e econômica do planeta. Resultou em parte das tensões geradas pela expansão americana, um atrito que se iniciou nas primeiras décadas do século passado e adquiriu velocidade estonteante às vésperas da entrada no terceiro milênio. A globalização econômica também carrega a impressão digital de asiáticos e europeus, mas é percebida quase universalmente como benéfica preferencialmente para os americanos. "O ritmo que a crescente eficiência e a produtividade dos Estados Unidos imprimiram à economia mundial nas duas últimas décadas foi muito forte", diz o economista americano Paul Krugman. "Em muitos países, ele provocou um processo de destruição criativa, que, se foi benéfico por um lado, por outro dilacerou tradições culturais e gerou insatisfações profundas."

A força avassaladora do modelo americano criou sentimentos planetários de insegurança e impotência. No plano econômico, registrou-se uma obsolescência dos parques industriais de alguns países na confrontação com modelos mais eficientes de produção de riqueza. Mercados antes protegidos foram inundados por produtos mais baratos e melhores que aqueles fabricados localmente. O movimento de globalização gerou prosperidade e eficiência econômica sem precedentes para muitas nações, e não apenas para os Estados Unidos. Mas, ao enfraquecer setores industriais tradicionais de economias retardatárias, gerou também muita insatisfação. No campo político, muitos países sentiram minada a própria soberania, à medida que o foco de muitas decisões importantes se transferia para Washington e Wall Street. Até nações poderosas acusaram o golpe dessa guinada de poder em direção aos Estados Unidos. "Quanto mais fortes eles ficam, mais estrondosa será a queda. Todo império termina em espetáculo", escreveu no The Times de Londres Matthew Parris, político do partido conservador inglês.

AFP
MISTÉRIO HOLANDÊS
A imagem acima foi apreendida por policiais holandeses numa escola para crianças islâmicas: ela ilustra um calendário feito no começo do ano. Os dizeres em árabe: "Com ajuda de Alá morrerei por Alá"

De um lado é típico dos impérios, em todos os tempos, atrair desafiantes ousados e doses cavalares de antipatia. Foi assim com os romanos na Antiguidade e com a própria Inglaterra. Por outro lado, é curioso que potências que exerceram ou exercem seu poder de modo muito mais discricionário que os Estados Unidos não tenham atraído tanta antipatia das classes bem pensantes do mundo civilizado. A União Soviética despencou sobre si mesma numa implosão monumental de ineficiência e soberba sem que seus crimes hediondos tenham gerado metade da exasperação que a presença americana no mundo desperta. Hoje em dia, a própria China, um regime ditatorial expansionista, só pareceu incomodar o universo das "classes conversadoras" por ocasião do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial, em Pequim, no ano de 1989.

Não existem impérios inocentes. Nenhum país chega à posição de líder guindado pela ingenuidade. Os Estados Unidos com freqüência são ainda arrogantes e até hipócritas. As posições recentes dos americanos renegando acordos internacionais de proteção ecológica, como o de Kioto, aliadas ao fato de serem eles os maiores produtores de gases poluentes do planeta, certamente não atraem simpatia. A recusa em bancar suas obrigações financeiras como membros da Organização das Nações Unidas, a ONU, soa para muita gente como um desprezo para com a comunidade internacional. A nação mais rica do planeta não pode alegar falta de recursos nesse caso. É um tapa na diplomacia mundial o governo americano levar criminosos de guerra a tribunais internacionais, como fez recentemente com o ex-presidente da Iugoslávia Slobodan Milosevic, ao mesmo tempo que veta o direito de outros países e organismos internacionais de processar seus próprios cidadãos. Ações como essas causam ressentimento. Mas seriam elas suficientes para atrair um atentado terrorista da magnitude do que destruiu as torres gêmeas? Só da perspectiva de lunáticos. Também não se pode sacar uma justificativa da conta de ressentimentos acumulados em meio século de Guerra Fria. Foi um período de ódios e transgressões, no qual o império soviético sempre se destacou como muito mais ousado em suas investidas contra a soberania de outros países.

Há provavelmente alguns sentimentos mais simples, menos reflexivos, na gênese do antiamericanismo que se observa nos salões dos letrados. "O antiamericanismo em Paris e Londres é resultado de um pouco de irracionalidade, modismo e ignorância mesmo", diz o inglês Bryan Appleyard, autor de um artigo sobre o tema publicado pelo jornal londrino The Sunday Times e reproduzido no Brasil pelo jornal Estado de S. Paulo. Pode-se acrescentar outro ingrediente, a inveja pura e simples. Como lembra Appleyard, os Estados Unidos atualmente têm mais escritores, músicos e pensadores de projeção mundial do que todos os países da Europa. A cultura americana é dominante no mundo. E não apenas a cultura pop. "Os americanos são hoje os mais inteligentes, mais educados e cultos povos do planeta", escreveu o articulista inglês. "São pelo menos trinta as universidades americanas onde nossos melhores e mais brilhantes alunos seriam considerados apenas medianos." Ele diz que o antiamericanismo se alimenta também da memória seletiva de seus cultores. Eles não deixam os pecados do passado morrer de velhos. Ao mesmo tempo, nunca se lembram das grandes conquistas humanitárias dos EUA no passado. Foram os caipiras da América que em três oportunidades no século que passou salvaram a refinada civilização européia do caos. Na I Grande Guerra, as tropas do general Pershing desempataram uma cruel luta de trincheiras em que toda uma geração de jovens europeus apodrecia entre o tifo e a gangrena. Na II Guerra, libertaram primeiro a França e a Itália e depois toda a Europa do nazi-fascismo. Em seguida, financiaram a reconstrução do continente com o Plano Marshall. Antes que o século acabasse, os americanos liquidaram, sem violência, outro regime bárbaro, o comunismo soviético. Claro que tais feitos não concedem imunidade eterna aos Estados Unidos. Pelo mesmo raciocínio, também seus erros passados não deveriam pairar sobre eles como uma condenação perpétua. Ao menos na hora do luto.

FOTOS:
01-O MUNDO A SEUS PÉS
Os manifestantes pisoteiam a bandeira americana em protesto no Paquistão na semana passada
02-A GUERRA NO CAMINHO
Manifestante solitário ergue um cartaz pacifista em Los Angeles: oposição começa em casa
03-PROTESTO
Jovens em Berlim seguram cartazes com dizeres: "Parem a guerra. Civilização é genocídio". Na Índia, a queima da bandeira
04-MISTÉRIO HOLANDÊS
A imagem acima foi apreendida por policiais holandeses numa escola para crianças islâmicas: ela ilustra um calendário feito no começo do ano. Os dizeres em árabe: "Com ajuda de Alá morrerei por Alá"
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