domingo, 2 de agosto de 2009

O perigo de usar palavras leves para os terroristas


19/03/2009 - 15:33 - Atualizado em 20/03/2009 - 17:28
O perigo de usar palavras leves para os terroristas
Inventar termos suaves para tratar de coisas assustadoras é uma forma de covardia e de ajudar o inimigo
Christopher Hitchens
Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, isso ia acontecer. A seção A Semana em Revista do jornal The New York Times, fazendo alusão em sua segunda página aos recentes ataques suicidas contra a polícia e o Exército do Iraque, publicou o seguinte:

“Apesar de a violência em Bagdá permanecer razoavelmente baixa para os padrões pós-invasão, os ataques contra servidores iraquianos que operavam sob uma segurança razoavelmente alta indicam o aumento do nível de sofisticação dos insurgentes. Autoridades receiam que ex-baathistas militantes estejam novamente cooperando com a al Qaeda da Mesopotâmia, um grupo terrorista em grande parte cultivado em casa” .

Isso não saiu como “notícia”, mas como uma análise chamada “por trás da notícia”. Até o momento, a política do The New York Times era descrever a gangue conhecida como “al Qaeda da Mesopotâmia” pela frase padronizada “um grupo terrorista em grande parte cultivado em casa que a inteligência americana diz ser liderado por estrangeiros”. Essa formulação complicada e enganosa tinha pelo menos a intenção de fazer uma distinção entre os que acreditam que a al Qaeda da Mesopotâmia é uma intromissão dos binladenistas nos assuntos iraquianos e os que a veem como uma resposta local à presença da coalizão.

A forma longa e pedante da descrição também deveria abafar a controvérsia sobre se o conluio entre os baathistas e os binladenistas era uma coisa que já vinha de antes ou algo que apenas foi taticamente reforçado pela intervenção da coalizão. Mas pelo menos essa formulação enfadonha expressava a ambiguidade. E preservava a neutralidade do jornal diante de evidências um tanto convincentes de que a al Qaeda da Mesopotâmia seria uma franquia administrada por gente de fora em aliança estreita com o próprio Bin Laden, assim como um grupo jihadista estrangeiro, que há tempos fazia uso dos arsenais e do pessoal de Saddam Hussein.

Poderia haver duas visões para isso. Mas veja o que aconteceu. A formulação se transformou, por força da repetição, em um mantra, e o editor precisa cortar apenas uma linha de um parágrafo. Então, pronto: a al Qaeda da Mesopotâmia foi transformada por um jornalão em um “grupo terrorista cultivado em casa”. Ah, sim, “cultivado em casa”: uma imagem reconfortante da horticultura com ares agradáveis de vigor.

Inventar termos suaves para tratar de coisas assustadoras
é uma forma de covardia e de ajudar o inimigo
Até há pouco tempo, o jornal usava uma descrição do Exército Republicano Irlandês Provisório da Irlanda do Norte que era menos enganosa e mais divertida. Ciente do fato de que seus leitores sabiam que havia dois tipos discrepantes de cristianismo praticados na província, o The New York Times cumpria sua função de ser estritamente informativo caracterizando o IRA como “fortemente católico”. Dá para ver que os editores estavam tentando, em vão, sugerir que poucos protestantes de Ulster estavam se alistando no IRA. Mas a imagem resultante era ridícula, como se alguém que encontrasse um atirador do IRA viesse a ficar antes de tudo impressionado pela força de seu catolicismo.

Mas uma coisa deprimente aconteceu – e está se espalhando como uma erva daninha pela mídia. Desde o acordo da Sexta-Feira Santa, em que o IRA se comprometeu com o desarmamento e o movimento republicano com a política eleitoral, duas facções ultraviolentas juraram continuar a luta armada. Na semana passada, elas assassinaram membros do Exército e da polícia. E ficou resolvido referir-se a esses elementos repulsivos como “dissidentes”. Alguma coisa se perdeu quando um termo histórico de honra é aplicado a baderneiros homicidas. Mas em um mundo da mídia, em que os capangas assassinos de Bin Laden no Iraque podem ganhar um epíteto caseiro, talvez não devêssemos ficar surpresos.

Para quem quer uma definição de eufemismo, esta deve dar: inventar nomes bonitos para coisas feias e palavras suaves para coisas assustadoras. Nós já deveríamos ter aprendido que essa desonestidade é uma forma de covardia pela qual se faz parte do trabalho do inimigo. Desvendamos termos propagandísticos como danos colaterais e limpeza étnica. Não devemos tolerar o uso de “cultivado em casa” para uma coisa vil e hostil nem abusar do termo moral “dissidente” para uma coisa que é cruel e autoritária.

FOTO:
CHRISTOPHER HITCHENS
é escritor, colunista da revista Vanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em ÉPOCA
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI64748-15230,00-O+PERIGO+DE+USAR+PALAVRAS+LEVES+PARA+OS+TERRORISTAS.html

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